Um dia, numa rua da cidade, eu vi um velhinho sentado na calçada, com uma cuia de esmola e uma viola na mão. O povo parou pra ouvir; ele agradeceu as moedas e cantou essa música, que contava uma história que era mais ou menos assim:
Eu nasci há dez mil anos atrás
E não tem nada nesse mundo
Que eu não saiba demais
Eu vi Cristo ser crucificado
O amor nascer e ser assassinado
Eu vi as bruxas pegando fogo
Pra pagarem seus pecados, eu vi
Eu vi Moisés cruzar o Mar Vermelho
Vi Maomé cair na terra de joelhos
Eu vi Pedro negar Cristo por três vezes
Diante do espelho, eu vi
Eu vi as velas se acenderem para o Papa
Vi Babilônia ser riscada do mapa
Vi Conde Drácula sugando sangue novo
E se escondendo atrás da capa, eu vi
Eu vi a arca de Noé cruzar os mares
Vi Salomão cantar seus salmos pelos ares
Eu vi Zumbi fugir com os negros pra floresta
Pro quilombo dos palmares, eu vi
Eu vi o sangue que corria da montanha
Quando Hitler chamou toda a Alemanha
Vi o soldado que sonhava com a amada
Numa cama de campanha, eu li
Eu li os símbolos sagrados de Umbanda
Eu fui criança para poder dançar ciranda
E quando todos praguejavam contra o frio
Eu fiz a cama na varanda
Eu tava junto com os macacos na caverna
Eu bebi vinho com as mulheres na taverna
E quando a pedra despencou da ribanceira
Eu também quebrei a perna, eu também
Eu fui testemunha do amor de Rapunzel
Eu vi a estrela de Davi brilhar no céu
E pra'quele que provar que eu tô mentindo
Eu tiro o meu chapéu
Eu nasci há dez mil anos atrás
E não tem nada nesse mundo
Que eu não saiba demais.
(Paulo Coelho/Raul Seixas)